Mas espera um pouco, quem falou que seria fácil? Viver envolve sempre, como venho dizendo, o relacionar-se com o outro, outro que, falando de uma maneira geral, em algum momento das nossas vidas nesse vale de lágrimas não corresponderá àquilo que apostamos nele e, muitas e muitas vezes, nos decepcionaremos. Essa é uma verdade universal da condição humana.
Mas se sempre foi assim nem sempre o sofrimento vindo da decepção alcança o mesmo grau nas pessoas, como não causa o mesmo efeito um mesmo sacrifício em dois indivíduos diferentes. Se, portanto, é fato que nos decepcionamos, é também fato que os espíritos sofrerão de acordo com suas esperanças. Espíritos mais fortes agüentam mais, os mais fracos ou enfraquecidos pouco.
Neste sentido creio que nós que vivemos nesses dias levamos séria desvantagem sobre nossos antepassados. Explico: Por uma série de razões que seriam longas demais para explicar aqui, somos criados hoje como se tudo girasse em torno dos nossos umbigos, somos o centro do Universo (agora mesmo vi uma propaganda que dizia exatamente isto, infelizmente não me recordo qual era a empresa, acho que uma automobilística). Isto pode parecer legal para alguns, mas o resultado é que cada acontecimento ruim de nossas vidas se torna uma catástrofe de dimensões cósmicas, de forma que quando nos deparamos com uma decepção maior tudo, absolutamente tudo, parece perder o significado, o que acaba levando, em alguns casos, ao suicídio.
Nossa criação (e é evidente que existem exceções) não nos permite só ficarmos tristes com nossas decepções, faz com que fiquemos também miseráveis, porque achamos que isso só acontece conosco. Como isso pode acontecer comigo, logo comigo, sempre comigo? Deus não gosta de mim, sou a pior das pessoas!
Um amigo, cujo nome guardo como uma espécie de segredo de confissão, me contou certa feita que em determinado momento de sua vida sofreu muito por uma tremenda decepção com alguém em quem tinha, por assim dizer, apostado alto. Estava miserável. Ele me contou, ainda, que só saiu desse estado depois que um amigo, padre, lhe disse: "Mas escuta meu filho, todo mundo sofre!" (evidentemente não com essas palavras :-)) , permaneceu triste, mas não miserável, continuou vivendo. E não é um caso único, eu mesmo, lendo sua autobiografia, já "escutei" de Santa Teresinha do Menino Jesus: "Mas ô filhinho, todo mundo sofre!" (repararam a delicadeza!? Ela é uma doçura mesmo:-)).
Mas estas são exceções, sortudos que encontraram quem lhes tirasse da ilusão de serem mais importantes do que verdadeiramente são. O mundo moderno não quer saber se todo mundo sofre, não dá para fazer comparações quando alguém é o centro de toda realidade. Assim, para evitar a miséria, ele cria algumas regras para afastar as pessoas, para evitar choques, para evitar decepções, mas que acabam tirando o melhor da vida, a Caridade.
Para os que gostam das minhas introduções tenho o prazer de informar que acabam de ler uma, segue um trecho do livro "A Descoberta do Outro" do Gustavo Corção:
"O mundo é triste por causa da Caridade. Quando, num clarão de amor, reconhecemos o outro, no amigo ou na noiva bem-amada, toda nossa alma canta um aleluia, e dentro de nosso coração nos sentimos salvos. Estamos salvos. Agarramo-nos àquela tábua, seguramos o braço que se estende, abraçamos, beijamos, e com lágrimas de alegria, com gratidão de amigo ou de noivo feliz, repetimos dentro de nós o mesmo cântico dos cânticos: estamos salvos! O encontro na amizade e no amor nos livra da escuridão, da solidão, nos livra de sermos nós, cada um de nós, o centro solitário de um universo vazio e ruidoso.
Mas o mundo é triste por causa da Caridade, sem ela seria seco como a cinza, mas não seria triste. Logo depois do encontro vêm as decepções, e quando começa logo se multiplicam. Uma puxa a outra. As pessoas que se julgam razoáveis pasmam diante do sofrimento atroz que a falha do próximo nos traz; escarnecem o exagero da dor como já tinham escarnecido o exagero do amor. E essa meia sabedoria usa as palavras dos salmos: 'É infeliz quem confia nos homens...' Mas ainda é mais infeliz quem não confia!
É realmente incrível que alguém confie em alguém; que casais se casem; que amigos andem juntos sem olhares oblíquos para os gestos que o outro faz; tudo isso é incrível porque a experiência milenar demonstra que esse fenômeno é transitório e que a decepção é a verdadeira regra desse mundo. E quando chega essa hora em que o mundo tem razão, quando perdemos um amigo num mal-entendido e vemos o velho rosto, conhecido entre mil, crispar-se de má vontade, ficar duro de rancor, ou quando a lividez cobre devagar a face de uma esposa, então nos sentimos perdidos... Salvos há pouco; perdidos agora. Apostáramos demais.
Poucos dias correram entre o momento de salvação e a hora do desespero, e esses poucos dias foram mal empregados. Logo depois do clarão do primeiro encontro passamos a morar no convívio das sombras, no regime triste e monótono dos cachações.
O mundo nos aconselha a não crer no amor. Será um epifenômeno, uma mentira das glândulas; uma ressonância de opiniões; uma concordância de peles e cheiros. Aparecem pedagogos e sociólogos pedantes para nos propor uma solidariedade de camaradas humanos na base de uma tolerância que respeita tudo no outro, exceto o que ele é. Para evitar os cachações dos muitos corpos atirados no estreito vale de lágrimas, instituem-se regras especiais de bem-viver, regulamentos, leis sociais, boas educações, moral, civismo, para que as sombras circulem na caverna escura sem atritos demais e saibam dizer umas às outras: 'Com licença, com licença...'
A reconciliação que a prudência do século nos propõe baseia-se no artifício, na tática, na tolerância, no respeito às opiniões; baseia-se no desconhecimento do próximo. Quantas vezes já ouvi conselhos ditados da piramidal altura dessa meia sabedoria a jovens casais que se desavêm! Damas conhecidas e homens, cavalheiros espertos em conveniências ensinam que tudo se obtém do próximo à custa de uma habilidade especial em desviar o ombro para evitar a cachação. Nos jornais, as seções dedicadas às mulheres são infalivelmente arquitetadas com sentenças da mais moralizadora pornografia. Tudo são preceitos de esperteza feminina, manobras para conseguir em casa a perfeita harmonia.
O mundo está cheio de conflitos, é um campo de batalha ininterrupto e um pátio de misérias sem fim: mas a pior coisa do mundo ainda é a sua reconciliação"
(Gustavo Corção in "A Descoberta do Outro", Agir, 10a. ed., p.186-187, os grifos são todos meus)
"tuu totus ego sum, et omnia mea tua sunt"
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