segunda-feira, 9 de junho de 2008

O Outro - Parte II

Cumprindo minha promessa, segue a segunda parte do artigo.

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Eu dizia, na primeira parte dessa reflexão, que toda e qualquer pessoa é-com-outros, com eles forja sua identidade e vive, toma decisões, se relaciona, adquire responsabilidades, etc.

Evidentemente, as poucas linhas que escrevi naquela oportunidade não foram suficientes para esgotar o assunto, nem tinham tal pretensão aliás, mas julgo que já serviram como uma pequena introdução para a análise das implicações desse ser-com-o-outro.

Antes, porém, gostaria de levantar um outro ponto.

Qualquer crença que pregue a criação do universo por um Ser Absoluto, Ele mesmo incriado, ou seja, um Ser não submetido à qualquer princípio ou outro ser à Ele anterior ou superior, um Ser fora do qual nada é, ilimitado portanto, aceita, por conseqüência lógica, que esse Ser criou tudo o que há a partir de sua própria “vontade”, sem qualquer limite a Ele exterior.

A não ser, portanto, que esse Deus houvesse “desejado” criar todo o universo e, após isto, permanecer “fora” dele apenas sustentando sua existência (já que o universo criado jamais poderia ser sem o Ser de Deus, ou teríamos, então, dois seres Absolutos), podemos afirmar que Ele atua na sua criação sem qualquer limite, salvo aquele mesmo que o moveu a tirá-la do nada, sua “vontade”. Deus será, para essas crenças, portanto, o Deus do impossível.


Neste ponto, a fé cristã, por revelação divina, diz isto categoricamente. (Lc 1,37; Lc 18,27; Mc 10,27, etc.).

Tudo isto me serve, em um primeiro momento, para ressaltar que Deus poderia ter “escolhido” caminhos diversos para o homem. Poderia ter optado, p.ex., por trazê-lo ao mundo já com toda a ciência de que precisaria, ou sem passar pela concepção e o nascimento, ou ainda por se revelar à cada um pessoalmente.

Entretanto, não foi este o caminho escolhido por Deus. Como podemos notar em nossas próprias vidas e como a história nos comprova a opção foi por “utilizar-se” dos homens. Assim, agora já na percepção da Revelação, não foi a todos os indivíduos do povo judeu que Deus disse diretamente para sair do Egito para a terra prometida mas os fez escutar e seguir Moisés. Da mesma forma, Deus não colocou na cabeça de cada recém-nascido todos os costumes e leis de Israel mas os fez transmitir por seus pais que, por sua vez, já haviam recebido de seus avós e assim sucessivamente.

Mas talvez nenhum exemplo seja mais eloqüente do que a encarnação do Verbo de Deus. Jesus, sendo Deus, veio ao mundo em uma família, teve pais e a eles se submeteu, frequentou o templo, cumpriu as leis, aprendeu a lingua e costumes do seu povo e ensinou sua palavra de Vida, não de forma sobrenatural mas usando um instrumento comum a qualquer humano, a boca.

Aqui, porém, devo fazer uma ressalva. Ao dizer que Deus escolheu "usar" as pessoas e que cada "eu" é necessariamente formado no contato com os outros "eus", não estou dizendo que Ele não tenha infundido nada no espírito humano, que ele nasça vazio e seja preenchido só pelos costumes de cada povo específico e pela história pessoal de cada um. Deus deu ao ser humano, p.ex., seja ele de que povo for, uma consciência onde gravou os 10 mandamentos (Dt 6,6), por isso a similitude entre as regras básicas das crenças meramente humanas com a Revelação, mas divago, voltemos.

Também não estou afirmando que Deus não aja na vida de cada um dos homens, que não lhes dê a graça individualmente. Naturalmente para que cada pessoa aceite a Palavra de Deus ou para que pratique o bem é imprescindível que esta graça sobrenatural lhe seja disponibilizada de forma pessoal. Estou dizendo somente que: podendo abrir mão de intermediários o Criador optou, misteriosamente, por utilizá-los. Ou seja, Deus revelou que seu jeito de trabalhar inclui a ação missionária do homem, .

Até aqui eu disse, portanto, que: 1) Somos com o outro, que nos faz ser quem somos e com quem nos relacionamos, e; 2) Deus, mesmo podendo, não desejou fugir a esta regra que criou.

Já é permitido, portanto, começar a fazer algumas conclusões: com este “método de trabalho” o Criador já aponta para o valor do ser humano que é, então, "não só" diretamente responsável pela formação das identidades uns dos outros mas digno de, de certa forma, ser "embaixador" de Deus. Mas creio poder ainda mais longe, sobretudo tendo em mente a Revelação. Ao escolher uns e não outros para esta ou aquela tarefa, levando em consideração as características pessoais, o Senhor Deus sublinha ainda mais a diferenciação essencial entre cada uma das pessoas, desigualdade que faz de cada ser humano uma pessoa única, insubstituível e necessária, por isto mesmo infinitamente valiosa, amada por Deus e também por cada um de nós (Mc 12,31 e correspondentes).

Mas me permita ir ainda um pouco mais longe no âmbito da fé cristã.


A própria Boa Nova, por vontade divina, deve ser transmitida de homem a homem. Foi a uns poucos que Nosso Senhor escolheu mostrar-se por completo e a estes deu a missão e a autoridade de ensinar, em seu Nome, aos outros homens (Jo 20,21; Lc 10,3; 2Cor 10,8 ). Como vimos, negar isto equivaleria a dizer que Deus se revela pessoalmente a cada um de nós, o que eliminaria inclusive a necessidade de uma Bíblia e entraria em contradição com aquele "método de trabalho" que indiquei acima. Por esta razão, enquanto um dos apóstolos, ou um dos seus sucessores ou emissários, não chega ao encontro de uma pessoa esta não conhecerá Jesus e, inclusive, não poderá ser culpada desse desconhecimento. Assim foi nos primórdios e é assim até hoje. Se os apóstolos permanecessem trancados no Cenáculo após o acontecimento de Pentecostes o mundo jamais teria conhecido o cristianismo, ou, se seu pai, sua mãe ou qualquer outra pessoa não houvesse lhe contado (ou escrito) sobre Jesus você também não o conheceria.

Isto, porém, causa um grande problema. Se, como vimos, a Boa Nova é transmitida por uma pessoa diretamente a outra, caso o portador deturpe a palavra que recebeu ou lhe acrescente algo o destinatário estará recebendo uma coisa diversa daquela que foi ensinada.

Os primeiros cristãos (principalmente os apóstolos), evidentemente conscientes desse problema, desde muito cedo, quando passaram a escrever uns aos outros, com bastante ênfase exortavam a guarda e a permanência na fé verdadeira que os apóstolos tinham transmitido oralmente ou por carta (2Tes 2,15, 1Cor 11,2; 2Tim 1,13-14).

Com efeito, a comunicação escrita poderia atingir mais facilmente um número maior de pessoas e guardar com segurança parte importante do que Jesus havia ensinado, porém, sozinha aumenta sobremaneira um outro problema, o da interpretação.


Se em uma ponta, a do escritor, se pretende transmitir, com a autoridade que lhe foi dada, a Verdade que lhe foi Revelada, na outra temos o leitor que recebe os signos e os decifra, retirando deles uma mensagem. Entretanto, essa interpretação será influenciada pelas tradições que o próprio leitor recebeu antes de lê-la. Como, então, garantir que a mesma mensagem que se quis transmitir será recebida na outra ponta?

Para aclarar um pouco mais o problema que surge no momento da interpretação volto um pouco naquilo que até aqui tenho tratado. Se, como disse, toda pessoa é um ser-com-os-outros, sempre que ela for buscar o sentido daquilo que está escrito ela se valerá daquela carga que recebeu durante sua vida, do pai, da mãe, do professor, do líder religioso, da cultura na qual está inserido, etc. Isto fica bastante claro quando vemos a interpretação contraditória que católicos, protestantes (e só aqui temos milhares disputando entre si) e espíritas podem dar a um mesmo texto, ou como pessoas de diversas épocas podem entender o alcance da palavra "amor".


Essas tradições não nascem da leitura da Bíblia, mas necessariamente a antecedem (tanto na história da cristandade quanto na vida pessoal de cada um). A rigor o sujeito nem leria a Bíblia se não tivesse nascido em família cristã ou em algum ponto de sua vida esse encontro não lhe fosse oportunizado e querido. Se o leitor deixar um pouco de lado a teoria e pensar na vida concreta facilmente perceberá que, no seu próprio caso, as leituras que faz são sempre influenciadas por uma bagagem anterior, mesmo que depois algumas possam nem ser decisivas na conclusão.

O problema é que no caso das Sagradas Escrituras a mensagem emitida deve ser a mesmíssima captada, já que sendo uma só Revelação, uma a via para a salvação, uma só a Verdade e um só Deus, qualquer erro, por mínimo que seja, levará à um caminho diverso daquele que é o Cristo e, consequentemente, à perdição. Não a toa as Escrituras Sagradas salientam em várias oportunidades uma grande preocupação com a interpretação do que foi escrito, seja negativamente, dizendo claramente que os tolos as deturpam para a própria perdição e que nenhuma das profecias são de interpretação pessoal (2Pe 3,16; 2Pe 1,20), seja positivamente, exortando, como mostrei acima, que permaneçamos fiéis ao que foi ensinado, inclusive oralmente.

Do que foi dito se segue obrigatoriamente que entre todas as tradições que antecedem e devem guiar a leitura e a interpretação dos textos sagrados apenas uma é A correta, apenas uma é compatível com a mensagem original, e é nela que a leitura deve estar imersa. E aqui surge um novo problema: como saber qual é essa Tradição?

Seguindo ainda a lógica de que Deus se utiliza de homens para espalhar a Boa Nova e sabendo que Nosso Senhor primeiramente escolheu e deu autoridade a doze pessoas para falar em seu nome (Mc 16,15), fica evidente que a Tradição em que todo texto sagrado deve ser lido é aquela dos Apóstolos, que, de uma forma ou de outra, tem que ter perdurado até os nossos dias, ou, como vimos, os cristãos apenas acidentalmente esbarrariam na Verdade transmitida por Jesus.

O problema passa a ser, então, identificar onde esta Tradição se encontra, e mais uma vez recorremos à lógica do plano divino. Da mesma forma que Nosso Senhor deu autoridade aos doze (juntamente com São Paulo, diretamente escolhido por Nosso Senhor, mas que, ainda assim, vai ter com São Pedro - Gal 1,18) a falar e agir em seu nome, estes escolheram, prepararam e autorizaram outras pessoas para fazer o mesmo, repassando a autoridade que receberam do próprio Mestre. Estes novos apóstolos, por sua vez, devem ter feito o mesmo ou a autoridade de falar em nome de Nosso Senhor se perdeu e com ela toda a oportunidade de o seguir com a certeza de que se está no Caminho, na Verdade e na Vida.

Felizmente os testemunhos dos primeiros cristãos várias vezes tratam do perpetuamento dessa autoridade, como é o caso de São Clemente Romano (séc. I, terceiro bispo de Roma), que diz em sua carta aos Coríntios:

"Nossos apóstolos conheciam, da parte do Senhor Jesus Cristo, que haveria disputas por causa da função episcopal. Por esse motivo, prevendo exatamente o futuro, instituíram aqueles de quem falávamos antes [bispos e diáconos], e ordenaram que, por ocasião da morte desses, outros homens provados lhes sucedessem no ministério" (44,1-2)

Santo Inácio de Antioquia (final do séc. I, início do séc.II), terceiro bispo depois de Pedro na Igreja de Antioquia, em suas diversas cartas, p.ex., exortava as comunidades pelas quais passava, preso a caminho do martírio em Roma, para que obedecessem seus respectivos bispos e escreve entre outras coisas:

"Ela [a Igreja em Filadélfia, à qual dirige esta carta] é minha alegria eterna e duradoura, sobretudo se os seus fiéis permanecerem unidos com o bispo, com os presbíteros e os diáconos que estão com ele, estabelecidos conforme o pensamento de Jesus Cristo, o qual, segundo sua própria vontade, os fortificou e confirmou com o seu Espírito Santo." (Carta aos Filadelfienses, saudação)

Por estes e outros testemunhos vê-se claramente que há, de Nosso Senhor aos apóstolos, destes aos seus sucessores, destes aos seus e assim por diante, uma linha ininterrupta que liga a autoridade de um bispo de nossos dias (evidentemente aquele que a recebeu de um sucessor legítimo de um apóstolo, nunca alguém que tenha resolvido usurpar esse título sem contudo tê-la recebido) àquela dos apóstolos. Portanto, só imersa na Tradição viva que guardam estes bispos e só na autoridade que têm para ensinar é que a interpretação daquilo que está escrito nas Sagradas Escrituras alcança com certeza sua significação original.

Tal fato fica ainda mais evidente com a lembrança de que mesmo as Sagradas Escrituras tiveram sua formação devida tanto à Tradição quanto à autoridade do Bispo, o que só ocorreu definitivamente no século IV.


Creio ter demonstrado até aqui que Deus se serviu dos homens para transmitir sua boa nova, e, usando desta mesma lógica, quis depender deles para que garantissem a completude e a Verdade do que é ensinado. Não faz sentido imaginar que Deus tenha querido usar dos homens para ensinar e produzir escritos, depois usá-los novamente para selecionar, entre tantos, aqueles que eram inspirados, mais tarde usá-los para copiar à mão e levar ao maior número de lugares possível, sem falar em utilizá-los para ler, para si e para outros, para, então, no momento da interpretação iluminar cada leitor individual e infalivelmente sobre a verdade ali contida. Se fosse para quebrar, aqui, sua própria regra, seria muitíssimo mais simples soprar a Verdade no ouvido de cada uma das pessoas, não haveria necessidade de apóstolos e de Bíblia Sagrada, mas este, como já disse, não é o método de trabalho de Deus, que criou o homem para ser-com-os-outros e se mantém fiel ao que criou.

Acabo aqui a segunda parte desse meu artigo. A seguir tentarei lançar um olhar sobre o papel do "outro" na vida cotidiana da Igreja. Rezem por mim. ;-)


"tuu totus ego sum, et omnia mea tua sunt"

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