quinta-feira, 5 de junho de 2008

O Outro - Parte I - 2ed.

Prefácio da segunda edição:

Como promessa é dívida e, além do mais, não poderia deixar que pensassem que o tio aqui ficou maluco, segue o texto revisado do artigo sobre a alteridade.

Já havia dito ontem, e repito hoje para os preguiçosos, esta é só a primeira parte mas ainda esta semana, no mais tardar na próxima, publicarei também a segunda. Fiquem de olho, critiquem e opinem.

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O Outro - Parte I

Foi debatendo com uma pessoa que me surgiu a idéia de escrever um pouco mais detalhadamente sobre uma questão que, ao que me pareceu, não estava muito clara para ele e talvez também para muitas pessoas. Trata-se do “outro”, ou da alteridade, ou do próximo, como preferirem, do seu papel em nossas vidas e das suas implicações na religião cristã.

Este é, portanto, meu objetivo aqui. Obviamente o tema é muito abrangente e, por isso, só tenho pretensão de tocar apenas pontos principais, para detalhar a importância das outras pessoas em nossas vidas e, a partir daí, analisar a importância delas no cristianismo.

O que vou dizer corre o grande risco de parecer óbvio demais pois são experiências pelas quais todos nós passamos. Por este motivo peço um pouco de paciência.

Não há pessoa no mundo que nunca tenha tido contato com uma outra pessoa. Desde a nossa concepção já somos com o outro. Ainda nem saímos da barriga das mamães e já dependemos e nos relacionamos com elas, criando inclusive um vínculo afetivo. Nem sabemos o que está acontecendo, nem pensamos nisso, enfim, nem nos conhecemos e já conhecemos o outro, nossas mães.

Tiram-nos do aconchego do seio materno e, junto com o primeiro contato com o externo, temos imediatamente o encontro com várias outras pessoas. Em diversas ocasiões até a respiração é iniciada com a palmada aplicada pelo outro, médico, e, mesmo sem entender nada, mesmo com tanta novidade, nos acalma o cheiro e a voz do outro, mamãe. Antes mesmo de conhecermos o mundo exterior conhecemos e nos relacionamos com o outro.

Essa presença, que nos concebeu e nos persegue desde então, jamais sairá de nossas vidas, mesmo que o exercício da liberdade nos leve ao isolamento em uma montanha. É através de pessoas que temos acesso à linguagem, aos comportamentos sociais, aos conhecimentos acumulados e à religião. É com elas que nos comunicamos e praticamos a caridade, por causa delas podemos avançar sem precisar começar do zero.

Por tudo isto podemos dizer que, em certo sentido, somos mais do que nós mesmos, somos nós mais os outros. Ortega y Gasset dirá que eu sou eu mais minhas circunstâncias, ou seja, cada pessoa é ela própria, seu físico, suas capacidades, seus dons, sua consciência, mas também aquilo que ela viveu, a educação que recebeu de sua família, as coisas que aprendeu, os resquícios dos relacionamentos que teve com certas pessoas, a cultura de sua sociedade e as religiões com as quais teve contato, etc. Todas essas coisas forjam a própria identidade de uma pessoa.

Como já disse mais acima, tudo isto é evidente. Tanto que a sabedoria popular já transformou em dito: “Dize-me com quem andas e te direi quem és”.

De fato, quando alguém lhe pergunta quem é você a resposta mais comum levará, além de aspectos físicos e aptidões, à explicação das escolhas que você fez diante das opções que lhe foram dadas e sua relação com outras pessoas. José, católico, programador, casado com Maria, com duas filhas, Ana e Teresa, filho de João e Cecília, etc... Se esta mesma pessoa tivesse nascido em uma cidade no interior do Iraque certamente as respostas seriam diferentes. Ele não poderá ser católico (ao menos não visivelmente) se em sua vida jamais alguém lhe houver apresentado a Igreja e o batizado, e também não poderá ser programador se alguma pessoa não lhe tiver ensinado o ofício. O fato de não ser nenhuma dessas duas coisas não pode sequer ser considerado como exercício de sua liberdade uma vez que é impossível a escolha do que não se conhece. Mesmo seu nome certamente não seria José mas mais provavelmente Mohamed qualquer coisa.

Essa condição humana é tão inescapável que, ainda que uma pessoa opte por ser revolucionária e deseje subverter todos ensinamentos recebidos, ela estará, necessariamente, fazendo-o a partir de oportunidades e pensamentos vindos de outras pessoas e contra aquilo que ela recebeu antes, agindo, ainda que negativamente, desde onde foi colocado por outras pessoas. Neste sentido nem Descartes e nem Marx, p.ex, são pensadores originários mas desenvolveram seus pensamentos à partir daquilo que já haviam recebido, da educação ao pensamento de outros filósofos.

Neste ponto já é possível perceber como é ridícula a tentativa de reforçar a individualidade pretendendo negar toda tradição recebida. Mudar o nome, revoltar-se contra a sociedade ou a família, recusar obediência às normas morais. Nenhuma dessas atitudes modifica o fato de que, ainda assim, o sujeito continuará um eu + circunstâncias, um eu + outros, eu + tradição.

Da mesma forma, tão claro quanto à participação do outro na formação da nossa identidade pessoal é o fato de que a presença desta alteridade nos afeta diariamente, motivando muitas das nossas decisões, exigindo nossa atenção e, muitas vezes até, modificando profundamente nossas pequenas lógicas, ou melhor, nos obrigando a colocar o pé no chão. Somos um eu+relações-passadas-com-os-outros, mas também somos com o outro, constantemente.

Gustavo Corção, no seu “Descoberta do Outro”, narra o seu processo de conversão do ateísmo materialista para o Cristo e, lá pelas tantas, descreve um acontecimento essencial para a negação do seu materialismo histórico:

“Mas no dia seguinte recomeçava a história. Voltávamos a vociferar e discutir com o Manifesto na mão. Insensivelmente íamos aumentando a solidez do grupo por afeição, pelo brio, pelas palavras dadas, mas julgávamos que era a solidez da doutrina que nos unia melhor. Insensivelmente seríamos levados a praticar imprudências decisivas, gestos sem recuo possível, mesmo porque os agentes ativos da revolução já rondavam nossa porta para colher nossos entusiasmos. As conversas já saíam das divagações e resvalavam para conseqüências práticas. Poucos dias mais e eu me alistaria, com materialismo histórico ou sem ele, pela irresistível força do grupo, numa célula comunista.

Ora, foi nessa ocasião que minha mulher morreu.

***

Morreu moça. Levou dois meses a morrer. E passei esse tempo curvado sobre o meu caso particular. Alguém me dissera que aquela toxemia gravídica, com os progressos da medicina, conta somente um e meio por cento de casos fatais. Passei dois meses quase sem dormir por causa desse um e meio por cento, dando-lhe água e comida como às criancinhas, cuidando das menores coisas, passando um dia feliz por causa de um defecar e logo outro acabrunhado porque o pulso subia. Vi o médico deixar cair o estetoscópio em cima da cama e ficar olhando pela janela, pensativo. Quando me aproximei ele disse:

- Bonito flamboyant!

Olhei também; era no vizinho em frente. Era bonito mesmo. Num dos galhos mais altos estava um passarinho. Lembrei-me de minha cartilha que na segunda ou terceira página dizia assim: ‘O viúvo viu a ave’. Durante algum tempo fiquei remoendo estupidamente esse fenômeno lingüístico pelo qual eu seria um viúvo. Achei esquisito e repulsivo o vocábulo. O médico então me explicou, com termos caridosos, que o meu caso particular estava entrando devagarzinho naquele um e meio por cento, e pondo a mão no meu braço, de leve, com cerimônia, falou-me em Deus.

Viveu ainda uns vinte dias. Uma tarde fui para o quintal e sentei-me num banco, embrutecido. Olhei o Sol que se deitava por trás da casa do coronel. Lá ia o Sol. O Sol era um milhão e quatrocentas mil vezes maior do que a Terra; a Terra, com seus quintilhões de toneladas, era um grão de poeira perdido dentro duma enorme galáxia... Acordei de meus cálculos astronômicos pensando na minha doente desenganada. Era um caso particular, um ínfimo caso particular metido no universo e no tempo. Pensei no materialismo histórico; e senti de repente um calor de vexame no rosto. Olhei em volta com receio que me tivessem visto o pensamento. Senti, como ainda hoje quando me lembro, um vexame intenso. Haverá decerto coisas mais graves, ações muito mais sérias, de piores conseqüências, mas não há nada mais persistente do que a lembrança de uma gafe. Tudo aquilo, as discussões, os sistemas, tinha sido uma gafe. Eu bem sabia, ali sentado no banco, que voltaria depois ao meu trabalho e à vida de cada dia; que sentiria menos à medida que o tempo passasse, que tornaria a fazer meus aparelhos e ler meu galvanômetro. Mas de uma coisa estava certo: o materialismo histórico e a grande raça branca nunca mais teriam sentido para mim. A unidade de minha casa se restabelecia a preço alto, e o sobrado levava a melhor. Olhei para o sobrado, para as janelas do sobrado, e logo o Sol, com todos os seus milhões de vezes, pareceu-me pequeno, e com todo o seu luxo de elétrons e de fótons pareceu-me ridículo diante daquela persiana fechada.

Veio o padre. O franciscano que tantas vezes nos visitara por causa do órgão. O órgão estava embaixo, na sala da frente; e por causa dos seus fios, dos osciladores, de cada peça que durante anos estudara, o padre franciscano estava em cima, no sobrado, tirando dos panos de seu hábito um pedacinho de pão. E foi assim que o Corpo de Deus entrou pela primeira vez sob o meu teto, e que eu assisti, louvado seja Nosso Senhor, ao milagre de uma boa morte. Porque ela riu no seu último dia!” (A Descoberta do Outro, Agir, 10ª. Edição, p. 22-24)

Foi o amor à esposa, àquela pessoa concreta, de carne e osso, que jazia sobre uma cama que o despertou de uma fantasia coletivista, abstrata, na qual, inclusive, a morte de algumas pessoas durante o processo seria inevitável, o que sequer lhe causava remorso ou asco. Foi salvo Graças a Deus e através do outro, o que, infelizmente, não aconteceu com Lênin, Stálin, Mao ou Fidel, deixando um saldo de centenas de milhões de mortos.

Encerro aqui a primeira parte, na próxima oportunidade pretendo passar à análise das implicações disto no cristianismo.



"tuu totus ego sum, et omnia mea tua sunt"

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