terça-feira, 17 de junho de 2008

Providência e Paternidade

"(...) Essa paternidade divina é o fundamento da irmandade dos homens: são irmãos por serem filhos do mesmo Pai; suprimindo-se isto, elimina-se o fundamento da fraternidade. Há dois séculos se insiste tenazmente na noção de fraternidade, ao mesmo tempo que se elimina sua justificação. Não se trata de mera 'semelhança', que não basta para estabelecer um vínculo fraterno. A semelhança não é total nem necessária. As diferenças entre os homens são múltiplas, e freqüentemente ocupam o primeiro plano da atenção. A humanidade se apresenta dividida de mil maneiras, diante de diferenças que podem conduzir À exclusão, ao desprezo, ao ódio. A história é um catálogo interminável destas atitudes.

O que não são, não podem ser, é cristãs. Brotaram mil vezes entre cristãos, às vezes 'como tais', mesmo ainda em nome do cristianismo, mas nem por isso deixaram de ser infidelidades gravíssimas e profundas.

A garantia do amor prévio de Deus a todos os homens como filhos é o fundamento da irmandade entre eles e da exigência do amor mútuo. O cristianismo estabelece um vínculo radical entre todos os homens, sem desconhecer sua variedade, suas diferenças. O Novo Testamento está cheio de referências a essa diversidade, de origem, ou povo, sexo, condição social. Reiteram-se as enumerações dessas diferenças, precisamente para superá-las, sem anulá-las nem desconhecê-las, pela superior unidade da fraternidade, isto é, da comum filiação em relação a Deus.

A 'fraternidade' abstrata e vazia, baseada em uma semelhança que não é plena nem suficiente, tem sido corrompida pela falsidade, e por isso não impediu o ódio entre os supostos 'irmãos'. Mas, e entre os cristãos? O cristianismo reconhece, é preciso salientar, as diferenças, as oposições, as lutas. Há referências explícitas aos 'inimigos': pode havê-los, há que contar com eles. Não há irrealidade nem utopismo na revelação cristã.

O mandamento do amor ao próximo significa que todos os homens, sem exceção, são próximos, pela filiação comum do mesmo Pai. Também os inimigos? Certamente: a inimizade não exclui a irmandade: os inimigos o são somente até certo ponto. A fórmula poderia ser: apesar de tudo.

Toda hostilidade, da parte do cristão, tem que ser penúltima. A fórmula adversus hostes aeterna auctoritas não é cristã. Entenda-se bem: não é somente a hostilidade 'entre cristãos' a que tem que ser penúltima, mas a de cristãos ante outros homens quaisquer, ante outros irmãos. A Fórmula tradicional - e admirável - 'paz entre os príncipes cristãos', que autorizava a luta contra os infiéis, devia estar sujeita à limitação de toda hostilidade entre homens.

A hostilidade, ainda que seja inevitável e justificada - por exemplo, ante a agressão -, pode e deve cessar tão logo seja possível. Não pode ser 'implacável'. Por outro lado, deve ter limites em seu conteúdo; a ninguém se pode desejar a condenação, por 'provável' que possa parecer. São conseqüências inevitáveis de ver Deus como Pai."

Julián Marías - "A Perspectiva Cristã" (ed. Martins Fontes, 1a. edição, pp. 42-44)



"tuu totus ego sum, et omnia mea tua sunt"

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