sexta-feira, 4 de abril de 2008

A Lei Positiva e a Possibilidade de Desobedecê-la

Há alguns dias, em uma dessas comunidades do orkut, surgiu uma discussão sobre a licitude moral da desobediência de uma lei civil na qual me permiti dar uns pitacos e que agora resumo aqui.

A lei é, segundo São Tomás de Aquino, uma ordenação da razão, promulgada para o bem comum por aquele que dirige a comunidade, ou seja: não é arbitrária; é dirigida ao Bem comum (sempre e necessariamente o próprio Deus); deve ser promulgada, ou seja, estar ao alcance da inteligência; e é sustentada por quem dirige a comunidade (Deus, no caso da lei natural, e aqueles que exercem a autoridade em seu nome no caso da lei positiva).

Para São Tomás de Aquino e logo também para mim, seu humilde discípulo, existem três espécies de leis: a lei eterna, a lei natural e a lei positiva.

A lei natural é a que o homem conhece pela razão, é uma participação da lei Eterna (que ordena todo o universo), é uma impressão que Deus põe em cada pessoa e pela qual se pode discernir entre o bem e o mal. Já a lei positiva é aquela que o homem promulga para reger uma comunidade (como o código civil, p.ex), ela deve explicar e determinar as aplicações da lei natural, porém é sempre fruto da cabeça do legislador, no sentido de que é ele quem transforma em palavras aquilo que deseja estabelecer como norma positiva, seja fruto de uma percepção da consciência, seja uma invenção puramente racional.

Do que eu disse vemos, portanto, que a lei positiva tem seus limites, ou seja: para ser moralmente legitima ela deve:

1- ser conforme a lei natural e não violá-la em hipótese alguma;
2- ser ordenada para o bem comum (que não é simplesmente a vontade de um indivíduo, de um grupo ou de uma maioria de vontades);
3- não ordenar o que é impossível de ser feito (parece incrível mas tem aplicador do direito que esquece essa regra).

Leis que cumpram esses requisitos devem, em regra, ser obedecidas.

Já leis que não são "fruto" direto da lei natural, mas que não a violem (uma lei que organize os lugares para estacionamento, ou limite de velocidade, ou algumas burocracias, ...) devem ser obedecidas como se obedece a ordem de um pai, simplesmente em honra à autoridade que a promulgou.

Porém essas leis não tem valor próprio, não são moralmente boas ou más, e é isso que o jeitinho brasileiro compreende direitinho (com o perdão do trocadilho).

O brasileiro, com muita facilidade, compreende que a letra desse tipo de lei não é absoluta, não obriga como a lei natural e que serve apenas para organizar duas ou mais condutas. Ora, se o semáforo serve para organizar quem pode ou não passar (o meu carro, o outro carro ou o pedestre), quando, às 3:30 da manhã, só eu estiver na rua não existe nada para ser organizado, eu posso passar com o meu carro sem parar no sinal vermelho e não estarei cometendo nenhum pecado.

A coisa parece ser simples mas para o pessoal que não crê em uma lei natural e que prega que o direito deve ser obedecido simplesmente porque está escrito isto não está claro e, provavelmente, vão dizer que o sujeito tem sim que parar no sinal as 3:30 da manhã. Eu mesmo conheço pessoas que esperam o sinal para pedestres abrir para atravessarem (e na faixa) mesmo que não tenha carro vindo em nenhuma direção.

Já em casos mais extremos, em que haja afronta direta à lei natural, a lei positiva pode, e em algumas circunstâncias deve, sim ser descumprida.

Tal é o caso, p.ex, de uma lei que preveja o desarmamento obrigatório; ou que obrigue padres, pastores, rabinos, etc... a aceitar calados qualquer drag queen que queira permanecer durante as respectivas celebrações; ou ainda que institua uma poupança solidária, que rouba o dinheiro para redistribuí-lo; ou, por fim, impostos abusivos, que inviabilizem ou dilapidem a propriedade privada. Isso para mencionar somente leis que afetarão aqueles que discordam delas, mas mesmo leis que não afetem diretamente a conduta de quem discorda podem e devem ser consideradas ilegítimas e, por isso, devem ser combatidas. O Aborto é um caso clássico.

Como eu disse acima: a lei positiva deve estar sempre voltada para o Bem comum, que em última instância é Deus, e sempre conforme à lei natural. Se uma norma positiva vai contra esses dois princípios ela é ilegítima e os membros da comunidade em que ela é promulgada devem lutar por sua revogação ainda que isso fira interesses, mesmo que de uma maioria.

"Ok. Mas devemos desobedecer uma lei posta por uma autoridade legítima? Isto não é pecado?"

Primeiro é sempre bom lembrar que a regra é a obediência, como aquela devida a nossos pais, entretanto, como demonstrei acima, no caso de afronta de uma lei positiva à uma lei natural o católico pode ter a consciência (e guardem essa palavra) tranqüila de que não estará cometendo nenhum pecado.

"Mas ao invés de simplesmente desobedecer não deveríamos lutar para conscientizar as pessoas e tirar a lei anti-natural do ordenamento jurídico?"

Uma coisa não interfere na outra. O caminho ordinário para que alguém questione uma lei é o Judiciário, que deve (ou pelo menos deveria) fazer justiça, o que implica necessariamente na adequação à lei natural impedindo a aplicação daquilo que lhe é atentatório. Entretanto, ainda que a lei seja mantida ela pode, ou deve, ser desobedecida.

Da mesma forma, a concientização de outras pessoas de que determinada lei é contrária à lei natural é um ato meritório, porém é importante esclarecer que a desobediência nestes casos não é uma simples forma de protesto, é muito mais o reflexo da lei natural e é pessoal. Já uma coisa diferente é a concientização coletiva que é muito salutar mas pode nem surtir efeito.

O ideal é, realmente, que a tal lei seja retirada do ordenamento jurídico pois o direito deve servir para o progresso da sociedade e não para a sua corrupção, entretanto estou tratando de uma lei positiva que ainda estivesse vigente e que pela regra do direito positivo deveria ser cumprida. Há casos em que não dá para esperar que a concientização faça efeito e que a pressão leve o legislador a retirá-la e nem isso é necessário.

"Mas como assim: pode ou deve? Não seria sempre um dever?"

No caso de uma lei ilegítima que lhe afete diretamente mas cuja obediência não seja ocasião de pecado, a obediência pode ser recebida como um sacrifício. Por exemplo, obedecer uma lei tributária confiscatória ou que lhe obrigue a passar fome pode ser recebida como mortificação, porém, no mesmo caso, se você tem filhos para criar não pode deixá-los morrer de fome, é sua obrigação como pai prover seu sustento, portanto a desobediência ai é um dever. Da mesma forma uma lei que permita o aborto ou o descarte de embriões deve sempre ser descumprida pois sua conseqüência é sempre pecaminosa.

"Por outro lado, o descumprimento de leis promulgadas por autoridades legítimas e confirmadas pelo Judiciário, sem qualquer trabalho de conscientização da comunidade, não descambaria em uma anarquia? Em outras palavras, se todos começarem a copiar a conduta desobediente, sem ao menos saber racionalmente o porque, não cairemos no caos?"

Quando falamos de lei natural falamos de algo que está infundido na consciência de todo homem, muito embora muitas vezes possa estar obnubilada (sempre quis usar essa palavra) por ideologias. Assim, na prática essa desobediência acaba ocorrendo naturalmente sem nem sequer ser racionalizada como estou fazendo aqui (temos ai o comércio informal, p.ex, que é uma desobediência à lei que criou o ICMS e o IR, à obrigação de inscrição fiscal, emissão de notas e mais uma pá de leis acessórias). Se o abuso for muito grande, uma hora ou outra há uma reação (violenta ou não), também de forma natural, para que as coisas entrem nos eixos (vide o testemunho dos países comunistas).

Não se trata de atacar a ordem com o caos, trata-se de atacar a ordem com A Ordem, não se está simples e deliberadamente desobedecendo a autoridade mas recusando eficácia à uma lei ilegitima. Não me refiro a um gosto pessoal, nem ao descumprimento com base em achismo; estou falando da possibilidade de desobediência de uma lei positiva incompatível com a lei natural, como o sujeito vai saber justificar a ilegitimidade é um outro problema. O que é imprescindível é um forte sentimento da lei natural. Uma pessoa com pouco conhecimento geral e pouco afeito à racionalizações mas com uma profunda base moral terá, as vezes, muito mais facilidade de agir corretamente do que alguém com pós-doutorado que tenha sido criado em uma família modernosa. P.ex, Um pequeno agricultor, analfabeto de pai e mãe, que vê sua terra sendo invadida não pensará duas vezes em defendê-la, mais do que saber que isso é errado ele sente que assim o é. Da mesma forma, se ninguém o obrigar ele não vai deixar de colocar comida na mesa dos seus filhos para pagar um imposto. Porém, esse mesmo senso moral o diz que ele tem que obedecer a autoridade e ele o fará sempre que possível e de bom senso. Não há anarquia, há a percepção natural de algo maior.

Outro exemplo é o da lei "anti-homofóbica", alguém que coloque para fora do templo um homem vestido de mulher, ainda que não saiba racionalmente que a lei é ilegítima, agiu corretamente.

Há risco de que o descumprimento de leis leve à uma anarquia? Sim, mas não no caso em tela e nunca por culpa da lei natural. A hipótese aqui é a de uma pessoa que descumpre justamente por conhecer ou "sentir" a verdadeira Ordem das coisas, a sua verdadeira hierarquia, e daí pode nascer um certo desgosto à pessoa que promulgou a lei, mas nunca contra a autoridade em geral. Ao contrário, se a desobediência se dá porque o sujeito é contra o governo, ou contra o panorama econômico, etc... há risco sim de que tudo acabe em uma espécie de anarquia, inclusive com prejuízo para o senso moral do sujeito. Mas é muito mais fácil que isso aconteça com um universitário-comuno-médio-padrão qualquer do que com o tal agricultor do exemplo anterior. Aquele terá suas justificativas racionais, ideológicas e/ou egoísticas, já este submeterá a ordem jurídica à Ordem maior, as vezes sem qualquer teorização.

No caso de um ordenamento como o brasileiro, p.ex, o número absurdo de leis acaba descolando um pouco a legislação positivada da lei natural, isto porque é comum que haja o descumprimento de algumas leis (estou usando a palavra lei de forma genérica, significando qualquer ato normativo) não necessariamente ilegítimas simplesmente por ser impossível cumprir todas, com isto as pessoas acabam perdendo, ou tendo embaçada, a noção de que a fundamentação de certas leis está não no papel, no governo ou no povo, mas em algo maior e Absoluto, ou seja, acaba havendo uma relativização da lei e, por fim, o descumprimento de leis naturais. Ai sim temos um grande risco de anarquia, porém isso não é culpa da lei natural mas do ordenamento (não só, é verdade).

Se alguém deixa de cumprir a lei positiva porque ela é conflitante com a lei natural, a consciência moral dessa pessoa se refina e não deturpa, afinal ela fez o que a moral lhe ensinou. Isso é diferente de apenas cumprir o que lhe convém, ai sim teremos uma degradação moral e no final das contas esse sujeito acabará descumprindo também a lei natural.



"tuu totus ego sum, et omnia mea tua sunt"

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