Lá pelo longínqüo 2008 eu trazia Camões para o blog, em um soneto que começava assim:
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Agora, já em 2010 eu leio em São João da Cruz:
"Para dar mais evidência a esta doutrina, observemos que o afeto e o apego da alma à criatura a torna semelhante a esta mesma criatura. Quanto maior a afeição, maior a identidade e semelhança, porque é próprio do amor fazer o que ama semelhante ao amado." (in Subida do Monte Carmelo, Livro I, capítulo IV, parágrafo 3).
Premissas idênticas, conclusões diferentes.
Em Camões o amante já nem precisa mais da amada, pois tem em si a parte desejada, se sente cheio, quase em um narcisismo disfarçado.
Em São João da Cruz o amante é diminuído por essa afeição. Ele diz mais a frente:"assim, o que ama a criatura desce ao mesmo nível que ela, e desce, de algum modo, ainda mais baixo, porque o amor não somente iguala, mas ainda submete o amante ao objeto do seu amor".
Para o Santo, portanto, todo amor, qualquer que seja ele (ao dinheiro, à comida, a um amigo, etc.) deve antes passar por Deus. Deve, então, ser amor através de Deus, através da Verdade, através do Bem. Só assim não somos diminuídos, não somos escravizados, não somos, enfim, tomados por falsas alegrias.
Quantas vezes nós amamos errado? Quantas vezes nos "transformamos" em outra criatura e somos por ela diminuídos e escravizados? Quantas vezes a criatura que amamos é nosso próprio umbigo e acabamos cheios de si, em um círculo vicioso infernal?
A quaresma é O tempo para revertermos essa situação: Evitando a vanglória, dando, pela oração, glória a Deus; Educando nosso amor ao desapego, através do jejum e da abstinência; e cultivando o hábito de amar através de Deus, pela caridade.
Precisamos desta via purgativa, desta purificação da alma, para crescermos, para deixarmos, ao menos em parte, a escravidão e as angústias e lágrimas que a acompanham. Sem isso viveremos na falsa esperança de um dia sermos felizes em nosso próprio mundo de fantasias, como o de Camões, que completa:
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.
Nunca vi isso funcionar, mas se você está disposto a tentar, vai lá amigão... mas não diga que eu, ou melhor São joão da Cruz, não avisou.
"tuu totus ego sum, et omnia mea tua sunt"
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